Pular para o conteúdo principal

Solo fértil para a ciência.

Grandes descobertas são feitas por jovens que pensam fora da caixa. Apesar disso, o financiamento da ciência privilegia cientistas idosos e projetos pouco criativos. Esse contraste é fácil de entender, mas difícil de combater. Organizações como a Simons Foundation e o Howard Hughes Medical Institute nos EUA e agora o Serrapilheira no Brasil ajudam a desfazer esse aparente paradoxo.

Financiar ciência é difícil. Você paga alguém para descobrir algo que não sabe o que é, desconhece se a resposta existe, e não vislumbra como chegar lá. Era o estado das coisas quando Einstein começou a pensar sobre a relatividade. Compare com o financiamento de uma ponte, em que você sabe onde quer chegar, conhece a teoria necessária para executar a obra e já fez coisas do tipo antes.

Existem duas maneiras de financiar ciência. A antiga, quando reis distribuíam dinheiro ao sabor de suas preferências e os ricos financiavam sua própria curiosidade. E a moderna, em que o Estado seleciona e financia a curiosidade de um grupo de pessoas treinado para essa atividade.

A maioria dos países tenta criar um ambiente propício para o florescimento da ciência. Começa com um bom ensino fundamental, um ensino superior inquisitivo com programas de iniciação científica, cursos de mestrado e doutoramento e, finalmente, empregos para cientistas em institutos de pesquisa e universidades. A esperança é que bons cientistas, em um ambiente fértil, façam descobertas.

Mas isso não basta. É preciso financiar diretamente os cientistas para que desenvolvam suas ideias, e não faz sentido financiar qualquer ideia. Escolhas precisam ser feitas, e para direcionar o dinheiro público são necessários critérios. Como é impossível saber a priori quem fará descobertas importantes, os cientistas usam dois critérios. O primeiro é o histórico do cientista. Se baseia na crença de que pessoas que já fizeram algo relevante têm mais chances de fazer algo importante no futuro. O segundo é que propostas bem elaboradas terão melhores chances de sucesso. Infelizmente esses critérios privilegiam os mais velhos e a falta de ousadia. Cientistas mais velhos geralmente têm um currículo melhor, e ideias que fazem sentido para a maioria não são revolucionárias. Fazia sentido alguém propor que o espaço é curvo e o tempo, compressível? Não é sem razão que muitos argumentam que as grandes descobertas não seriam financiadas pelos sistemas atuais de avaliação.

No sistema científico global, os únicos atores que têm liberdade para atuar com critérios próprios são instituições privadas. Eles podem se dedicar a um único ramo da ciência, ou tentar resolver um único problema. Podem financiar poucos cientistas por longo tempo, ou muitos por pouco tempo. Podem financiar jovens ou escolher cientistas maduros. Essas instituições, apesar de distribuir menos dinheiro que os governos, têm um papel importante no desenvolvimento da ciência.

Agora, o Brasil possui o Serrapilheira (www.serrapilheira.org), uma instituição privada criada para financiar a ciência brasileira. O Serrapilheira nasce eterno, pois não precisa arrecadar dinheiro todo ano. Recebeu um a doação de mais de US$ 100 milhões e vai somente utilizar o rendimento desse fundo para conceder auxílios diretamente a cientistas.

O Serrapilheira fez suas opções. Vai financiar um grupo de cientistas jovens por um ano. Desse grupo, serão selecionados os mais promissores, que receberão uma maior quantidade de dinheiro por um período mais longo. Seu foco será ciências exatas e matemática. O primeiro edital já foi divulgado. Além de financiar jovens cientistas, o instituto pretende disseminar a cultura científica no Brasil, promovendo o pensamento científico entre a população.

Serrapilheira é o nome dados à cobertura de folhas e galhos que se acumula no solo das florestas. É na serapilheira que as folhas se decompõem e liberam os nutrientes que fertilizam o solo. Absorvidos pelas raízes, esses nutrientes dão origem às folhas que, no ano seguinte, voltam à serrapilheira. Vamos torcer para que o instituto estimule descobertas importantes e uma mudança da cultura cientifica no Brasil. Com isso, outros doadores contribuirão para o crescimento do Serapilheira, ajudando a fertilizar o solo onde cresce a ciência brasileira.

Nota do Manager Editor: Esta matéria foi veiculada pela primeira vez na Coluna de Fernando Reinach, no Jornal O Estado de São Paulo, em 22 de julho de 2017.

Fonte: http://lqes.iqm.unicamp.br/canal_cientifico/pontos_vista/pontos_vista_artigos_opiniao149-1.html

Postado por David Araripe

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Fármaco brasileiro aprovado nos Estados Unidos

  Em fotomicrografia, um macho de Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose CDC/G. Healy A agência que regula a produção de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, a FDA, concedeu o status de orphan drug para o fármaco imunomodulador P-Mapa, desenvolvido pela rede de pesquisa Farmabrasilis, para uso no tratamento de esquistossomose.  A concessão desse status é uma forma de o governo norte-americano incentivar o desenvolvimento de medicamentos para doenças com mercado restrito, com uma prevalência de até 200 mil pessoas nos Estados Unidos, embora em outros países possa ser maior. Globalmente, a esquistossomose é uma das principais doenças negligenciadas, que atinge cerca de 200 milhões de pessoas no mundo e cerca de 7 milhões no Brasil.  Entre outros benefícios, o status de orphan drug confere facilidades para a realização de ensaios clínicos, após os quais, se bem-sucedidos, o fármaco poderá ser registrado e distribuído nos Estados Unidos, no Brasil e em outro...

CONSERVAÇÃO DE ALIMENTOS E A EQUAÇÃO DE ARRHENIUS por Carlos Bravo Diaz, Universidade de Vigo, Espanha

Traduzido por Natanael F. França Rocha, Florianópolis, Brasil  A conservação de alimentos sempre foi uma das principais preocupações do ser humano. Conhecemos, já há bastante tempo, formas de armazenar cereais e também a utilização de azeite para evitar o contato do alimento com o oxigênio do ar e minimizar sua oxidação. Neste blog, podemos encontrar diversos ensaios sobre os métodos tradicionais de conservação de alimentos. Com o passar do tempo, os alimentos sofrem alterações que resultam em variações em diferentes parâmetros que vão definir sua "qualidade". Por exemplo, podem sofrer reações químicas (oxidação lipídica, Maillard, etc.) e bioquímicas (escurecimento enzimático, lipólise, etc.), microbianas (que podem ser úteis, por exemplo a fermentação, ou indesejáveis caso haja crescimento de agentes patogênicos) e por alterações físicas (coalescência, agregação, etc.). Vamos observar agora a tabela abaixo sobre a conservação de alimentos. Por que usamo...

Ferramenta na internet corrige distorções do mapa-múndi

Tamanho do Brasil em relação aos países europeus (Google/Reprodução) Com ajuda da tecnologia digital, é possível comparar no mapa o real tamanho de nações e continentes Os países do mundo não são do tamanho que você imagina. Isso porque é quase inviável imprimir nos mapas, planos, em 2D, as reais proporções das nações e dos continentes. Mas agora, com a ajuda da tecnologia moderna, as distorções do mapa-múndi podem ser solucionadas. É exatamente o que faz o site The True Size Of (em inglês, ‘o verdadeiro tamanho de’). Ao entrar na plataforma é possível verificar o real tamanho de um país, comparando-o com qualquer outro do planeta. Por exemplo, o Brasil sozinho é maior que mais de vinte países da Europa juntos (confira na imagem acima). Por que é distorcido? O primeiro mapa-múndi retratado como conhecemos é do alemão Martin Waldseemüller, feito em 1507, 15 anos depois dos europeus chegarem à América com Cristóvão Colombo em 1492. Na projeção, observa-se uma África muito maior...