Pular para o conteúdo principal

Da Caatinga para a indústria farmacêutica


Estudos do Laboratório de Farmacognosia da UFRN visam revelar propriedades do mulungu



Foto: Cícero Oliveira (ASCOM-Reitoria/UFRN)
A Caatinga contribui para a fixação do carbono da atmosfera, diminui o efeito estufa e o aquecimento global e melhora a conservação da água, do solo e da biodiversidade, o bioma tem sido desmatado para o consumo de lenha nativa e para a conversão dos espaços em pastagens e agricultura, segundo o Ministério do Meio Ambiente (MMA).

Sua vegetação é rica em espécies de plantas e animais adaptados às adversidades dos prolongados períodos secos. Nas situações de maior umidade da terra, encontram-se árvores como o juazeiro, aroeira e baraúna. Já na seca, com solo pedregoso, crescem o facheiro, mandacaru, xique-xique e macambira.

Diante de sua importância ambiental e pela falta de estudos científicos sobre o tema, surgiu no Laboratório de Farmacognosia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) o interesse em pesquisar plantas da família Fabaceae, e, neste primeiro momento, a ‘variação’ Erythrina velutina Willd, chamada popularmente de mulungu, conhecida também como canivete ou corticeira, e que apresenta propriedades calmante, expectorante, antibacteriana, entre outras aplicações medicinais.

A professora Raquel Brandt Giordani, do Departamento de Farmácia (DFAR- UFRN), iniciou suas pesquisas com plantas da Caatinga há cerca de sete anos e viu no edital público do Instituto Serrapilheira, iniciativa que visa financiar projetos de pesquisa com caráter inovador, a oportunidade de analisar as plantas da Caatinga sob suas características particulares. “O Instituto pediu uma ideia inovadora, algo que fosse fora do que normalmente é feito com produtos naturais no Brasil. Para fazer isso, a gente teve que elaborar uma pesquisa do que estava sendo tendência nas principais revistas científicas, mas, o que é tendência, costuma estar atrelado a um alto custo e ao uso de alta tecnologia. Então, por causa do auxílio financeiro do Serrapilheira, a gente vai ter acesso a tecnologias usadas lá fora há muito tempo e que são muito caras”, explica a pesquisadora.

O estudo tem como objetivo analisar os alcaloides, substância produzida pela planta por meio de aminoácidos, os quais pertencem à classe de produtos naturais produzidos pelas plantas e que parte dos medicamentos do mercado usa como princípio ativo na terapêutica de doenças. O trabalho iniciou com a coleta do mulungu, entre os municípios potiguares de Acari e Jardim do Seridó, na beira de estradas ou na margem de fazendas. Segundo o botânico do grupo de pesquisa, Alan Araújo Roque, a planta “é uma árvore de aproximadamente cinco metros de altura, com acúleos (semelhante a um espinho) bastantes característicos no caule e flores vistosas alaranjadas”, caracteriza.

A escolha desses locais se deu para que o vegetal estivesse em seu ambiente natural e com menos influência humana. Como a intenção é analisar o RNA, molécula sensível, ao coletar o material biológico foi feito o congelamento e o armazenamento em nitrogênio líquido até chegar ao laboratório da UFRN, onde aconteceu a tritura do material e a separação em sementes, caules e folhas. Em seguida, as amostras sofreram a extração de metabólicos, com enfoque nos alcaloides.

Os outros passos da análise do vegetal ocorrem em parceria com outras instituições de ensino como a Universidade de Brasília (UnB), a Universidade Estadual Paulista (UNESP), a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade Federal do Semiárido (UFERSA), Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Depois que as análises forem executadas, os resultados serão processados através da bioinformática para que possamos analisar e interpretar os dados gerando um manuscrito a ser submetido a uma revista científica até março de 2019, data que o Serrapilheira fará nova avaliação dos projetos para receber apoio por mais três anos”, conta a cientista.
Sementes de Mulungu. Foto: Cícero Oliveira (ASCOM-Reitoria/UFRN)

Entre os resultados esperados, estão a perspectiva de contribuir para o conhecimento sobre a Caatinga, compreender como fatores de um ambiente de multiestresse se coordenam e, a longo prazo, atingir à sociedade com a descoberta de novos alcaloides a serem aplicados na indústria farmacêutica. “Por ter características tão únicas, muitas espécies são endêmicas, ou seja, não existem em nenhum outro lugar do mundo. É um ambiente excessivamente exposto a atividades econômicas que degradam a vegetação e o solo. Além disso, é um bioma pouco estudado, pouco pesquisado. Então, muitas espécies de animais e plantas correm risco de desaparecer sem nem ao menos serem conhecidos”, relata o botânico.


Foto: Cícero Oliveira (ASCOM-Reitoria/UFRN)
Já para a docente, há um trabalho longo pela frente. “Quando compreendemos como a planta produz tal molécula, e ela é de interesse da indústria, como por exemplo os alcaloides de mulungu, a biotecnologia pode ajudar a fazer melhoramento na planta para que ela possa produzir mais eficientemente aquela substância”, citando como exemplo a forma como esses vegetais resistem à seca da Caatinga. Não à toa, é a mesma que um vegetal pode ser produzido para sobreviver e ser mais resistente.

Aprovada para o financiamento do primeiro ano e com expectativa de duração de quatro anos, a pesquisa começa analisando o Mulungu, mas tem a perspectiva de investigar mais dois vegetais. Contudo, há a dependência da representatividade estatística das amostras, uma vez que é preciso coletar em cinco locais diferentes e, em cada local, no mínimo cinco plantas para que o resultado seja confiável.

A ideia é analisar as três espécies de plantas para, ao final, comparar todas elas e chegar à conclusão de como os fatores da Caatinga podem influenciar. “Portanto, a chance de sucesso é grande devido aos múltiplos estresses simultâneos que a planta sofre aqui e aos fatores que estimulam o vegetal a produzir alcaloides bioativos, resultando em informações inéditas na literatura que buscam valorizar e destacar a Caatinga internacionalmente”, planeja.






Postado por Hadson Bastos

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Fármaco brasileiro aprovado nos Estados Unidos

  Em fotomicrografia, um macho de Schistosoma mansoni, causador da esquistossomose CDC/G. Healy A agência que regula a produção de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, a FDA, concedeu o status de orphan drug para o fármaco imunomodulador P-Mapa, desenvolvido pela rede de pesquisa Farmabrasilis, para uso no tratamento de esquistossomose.  A concessão desse status é uma forma de o governo norte-americano incentivar o desenvolvimento de medicamentos para doenças com mercado restrito, com uma prevalência de até 200 mil pessoas nos Estados Unidos, embora em outros países possa ser maior. Globalmente, a esquistossomose é uma das principais doenças negligenciadas, que atinge cerca de 200 milhões de pessoas no mundo e cerca de 7 milhões no Brasil.  Entre outros benefícios, o status de orphan drug confere facilidades para a realização de ensaios clínicos, após os quais, se bem-sucedidos, o fármaco poderá ser registrado e distribuído nos Estados Unidos, no Brasil e em outro...

CONSERVAÇÃO DE ALIMENTOS E A EQUAÇÃO DE ARRHENIUS por Carlos Bravo Diaz, Universidade de Vigo, Espanha

Traduzido por Natanael F. França Rocha, Florianópolis, Brasil  A conservação de alimentos sempre foi uma das principais preocupações do ser humano. Conhecemos, já há bastante tempo, formas de armazenar cereais e também a utilização de azeite para evitar o contato do alimento com o oxigênio do ar e minimizar sua oxidação. Neste blog, podemos encontrar diversos ensaios sobre os métodos tradicionais de conservação de alimentos. Com o passar do tempo, os alimentos sofrem alterações que resultam em variações em diferentes parâmetros que vão definir sua "qualidade". Por exemplo, podem sofrer reações químicas (oxidação lipídica, Maillard, etc.) e bioquímicas (escurecimento enzimático, lipólise, etc.), microbianas (que podem ser úteis, por exemplo a fermentação, ou indesejáveis caso haja crescimento de agentes patogênicos) e por alterações físicas (coalescência, agregação, etc.). Vamos observar agora a tabela abaixo sobre a conservação de alimentos. Por que usamo...

Ferramenta na internet corrige distorções do mapa-múndi

Tamanho do Brasil em relação aos países europeus (Google/Reprodução) Com ajuda da tecnologia digital, é possível comparar no mapa o real tamanho de nações e continentes Os países do mundo não são do tamanho que você imagina. Isso porque é quase inviável imprimir nos mapas, planos, em 2D, as reais proporções das nações e dos continentes. Mas agora, com a ajuda da tecnologia moderna, as distorções do mapa-múndi podem ser solucionadas. É exatamente o que faz o site The True Size Of (em inglês, ‘o verdadeiro tamanho de’). Ao entrar na plataforma é possível verificar o real tamanho de um país, comparando-o com qualquer outro do planeta. Por exemplo, o Brasil sozinho é maior que mais de vinte países da Europa juntos (confira na imagem acima). Por que é distorcido? O primeiro mapa-múndi retratado como conhecemos é do alemão Martin Waldseemüller, feito em 1507, 15 anos depois dos europeus chegarem à América com Cristóvão Colombo em 1492. Na projeção, observa-se uma África muito maior...