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Universo em expansão

A astrofísica argentina, líder do grupo que realizou a primeira detecção direta das ondas gravitacionais, teorizadas por Einstein, diz que elas nos levarão a compreender melhor o cosmo – e a nós mesmos


Há um brilho de luz própria no olhar da astrofísica argentina Gabriela González quando ela se lembra da noite de 14 de setembro de 2015. Não era para menos: naquela data, em Louisiana e em Washington (EUA), os detectores do Observatório de Ondas Gravitacionais por Interferômetro (Ligo, na sigla em inglês), que a cientista lidera, captaram, pela primeira vez, as ondas gravitacionais, teorizadas em 1915 por Albert Einstein (1879-1955) em sua Teoria da Relatividade Geral. No Ligo, Gabriela, de 51 anos, professora da Universidade do Estado da Louisiana (LSU), comanda um grupo internacional de mais de 1 000 pesquisadores. Na entrevista a seguir, concedida durante um simpósio que comemorou o aniversário de cinco anos do South American Institute for Fundamental Research (ICTP-SAIFR), em São Paulo, ela explica por que a captação daquelas minúsculas ondulações – que constituem distorções no campo gravitacional do universo, funcionando como se fossem “ecos” de eventos cósmicos – representa uma nova era para a astronomia. E, mais do que isso, coloca à nossa disposição “ferramentas para, literalmente, tentarmos compreender o passado e o futuro da humanidade”.

O que, afinal, são as ondas gravitacionais e por que sua detecção era tão aguardada pela ciência?

As ondas gravitacionais foram previstas na Teoria da Relatividade Geral, de Albert Einstein, há cem anos, e o fenômeno era a única parte da teoria que ainda não havia sido confirmada diretamente – apesar de nossa convicção de que estava correta. Os físicos costumam usar as metáforas de uma pedra caindo em um lago ou de um peso sobre um colchão para descrever o que são as ondas gravitacionais, mas gosto da imagem do tecido. O espaço-tempo seria o tecido do universo e as ondas gravitacionais, pequeníssimas ondulações em sua trama. Quando a distância entre alguns pontos do tecido, ou sua geometria, é alterada sutilmente, temos uma onda gravitacional.

O que essas distorções podem nos dizer?

As ondas gravitacionais são criadas por eventos cósmicos catastróficos, como a colisão de buracos negros [regiões do universo que possuem uma quantidade de massa concentrada tão grande que nada escapa à sua força de gravidade, nem mesmo a luz], a explosão de supernovas [estrelas com dez vezes ou mais a massa do Sol], ou o episódio que deu início ao nosso universo, o Big Bang. Elas transportam energia e viajam pelo espaço como se fossem “ecos” desses fenômenos. Por isso, podem carregar informações sobre fenômenos que prevíamos, mas que não conseguíamos “ver’’ ou ‘‘ouvir’’ – e até sobre eventos desconhecidos, que sequer podemos conceber com o conhecimento e a tecnologia atuais. Poder detectar e medir as ondas gravitacionais nos torna capazes de observar esses fenômenos.

Como é possível enxergar esses eventos, se as ondas gravitacionais não são luminosas ou eletromagnéticas?

Convertemos os sinais captados pelo Ligo em vibrações sonoras, para serem compreendidos pelo público, mas, na verdade, eles não emitem ruído algum. Digo que as ondas gravitacionais nos oferecem outro modo de olhar para o universo, absolutamente inédito, como uma nova aberta janela para observá-lo. Alguns cientistas compararam a detecção das ondas gravitacionais ao aperfeiçoamento do telescópio por Galileu (1564-1642), que tornou possível ver novos detalhes do cosmo. Nossa primeira detecção, no ano passado, foi de ondas gravitacionais geradas pela colisão e fusão de buracos negros, fenômeno chamado coalescência. Tínhamos feito previsões sobre a possibilidade desse evento, porém jamais havíamos coletado evidências sobre os buracos negros e sua fusão. De uma só vez, conseguimos captar as ondas gravitacionais e elas nos trouxeram dados sobre os buracos negros e a coalescência. Pudemos, pela primeira vez, ‘’ver’’ isso acontecendo -- algo realmente incrível.

As ondas gravitacionais têm milésimos do diâmetro de um próton. Como os detectores do Ligo puderam captar algo tão minúsculo?

O Observatório começou a ser desenhado nos anos 1960 por cientistas como os americanos Rainer Weiss e Kip Thorne e o escocês Ronald Drever, que idealizaram os primeiros interferômetros de ondas gravitacionais – sistemas com sensibilidade para captar oscilações mais sutis do que a luz. Em 1995, trabalhei com Weiss, no Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), pensando em métodos para calculá-las e medi-las. Em 1999, o Ligo foi inaugurado, com dois detectores, um em Livingston, na Louisiana, e outro a mais de 3 000 quilômetros de distância, em Hanford, Washington, ambos nos Estados Unidos. Os detectores, construídos e operados pelos institutos de Tecnologia da Califórnia (Caltech) e o MIT são estruturas monumentais – diria até mesmo artísticas –, com instrumentos em forma de “L” de cerca de quatro quilômetros de extensão, que combinam lasers e espelhos capazes de captar distorções viajando no espaço com o tamanho de um milésimo do diâmetro de um núcleo atômico. Elaboramos pelo menos 250 000 modelos de ondas gravitacionais que seriam geradas pela fusão de buracos negros e mais centenas de milhares de modelos para outros fenômenos cósmicos. A ideia é que, se alguma onda gravitacional conhecida nos atingir, será sentida pelos dois detectores e conseguiremos reconhecê-la. Em setembro de 2015 começamos experimentos para uma segunda geração dos detectores, mais avançados, e durante uma noite de testes, as ondas foram captadas.

Os instrumentos não estavam finalizados quando as ondas gravitacionais foram registradas?

A segunda geração só estará funcionando plenamente no fim deste ano! Não deixávamos os detectores ligados o tempo todo, contudo, algumas vezes fazíamos os equipamentos funcionarem por vinte e quatro horas. A ideia era fazer testes assim entre setembro de 2015 e em janeiro de 2016 e realmente não achávamos que captaríamos algo relevante durante esses experimentos. No entanto, na noite de 14 de setembro, sinais diferentes, do tamanho de 4 milésimos de um próton, foram captados primeiro no detector da Louisiana e, 7,3 milésimos de segundo depois, em Washington. Percebemos que não poderiam ter sido causados por qualquer interferência ou ruído conhecido e enviamos os dados aos mais de 1 000 cientistas que compõem o Ligo, espalhados por catorze países, entre eles o Brasil. Passamos cinco meses revendo modelos e checando os dados e concluímos que os sinais se tratavam das ondas gravitacionais criadas pelos últimos 0,2 segundos da colisão de buracos negros de massas de 29 e 36 vezes maiores do que a do Sol que giraram um em torno do outro até se fundirem em um único. Esse fenômeno liberou ondas gravitacionais com energia equivalente a cerca de três vezes a massa do Sol – captadas por nossos detectores. Conseguimos descobrir ainda que elas viajaram por aproximadamente 1,3 bilhão de anos-luz de distância (cada ano-luz equivale a 9,46 trilhões de quilômetros) até chegarem a nós.

É possível que esse sistema tão sofisticado capte também as ondas gravitacionais geradas após o Big Bang?

Acredito que ainda não temos tecnologia suficiente para isso. As ondas geradas logo após o nascimento do universo, há cerca de 13 bilhões de anos, são muito mais sutis e os equipamentos do Ligo não são capazes de detectá-las. Temos algumas ideias para medi-las, mas não o suficiente. Não acho que poderemos medir essas ondas agora – entretanto, no futuro, quem sabe? A primeira detecção – já fizemos duas; a segunda ocorreu em 26 de dezembro de 2015 – é apenas o início de uma série de eventos que conseguiremos observar. À medida que mais detecções forem feitas e que a tecnologia for aperfeiçoada poderemos descobrir coisas que sequer imaginamos.

Como, por exemplo, a natureza da matéria e energia escura, que compõe 95% do universo, e, até hoje, é um mistério para a ciência?

As primeiras informações que as ondas gravitacionais nos trouxeram foram sobre os buracos negros – chamamos assim porque não podemos vê-los e por serem misteriosos para nós. Bem, da mesma forma, sabemos que a matéria escura existe por causa do efeito gravitacional que produz e acreditamos que ela seja difusa e não compacta. Mas, se a matéria escura é originada por sistemas compactos como buracos negros, segundo algumas teorias, nós já poderíamos medi-los. Depois da primeira detecção das ondas gravitacionais, muitos artigos foram publicados afirmando que a matéria escura pode ter origem em buracos negros binários, exceto os grandes e os pequenos. Os sistemas de buracos negros medianos, como os de 30 massas solares, não foram excluídos – esse é exatamente o tamanho do sistema que descobrimos. Algumas pessoas especulam que a matéria escura venha de sistemas assim. Sou um pouco cética a respeito dessa teoria, contudo, em breve, teremos medições, dados e veremos. Acredito que temos mais possibilidades de descobrir sobre os buracos negros que estiveram no princípio do universo.

Há novos observatórios de ondas gravitacionais sendo construídos pelo mundo. Eles usarão a mesma tecnologia do Ligo?

A terceira geração de interferômetros, um plano para as próximas décadas, vai usar tecnologia quântica e de criogenia (tecnologias para a produção de baixíssimas temperaturas), como o Kagra, inaugurado em 2012, no Japão. É uma nova ciência, que está apenas começando. Por enquanto, a segunda geração dos detectores do Ligo será ligada com força total em dezembro e vai coletar dados por seis meses – período em que surpreendentes descobertas poderão ser feitas. Em pouco tempo teremos também o que chamo de ‘‘astronomia multi-mensagem’’, em que diversos telescópios, radiotelescópios e detectores de ondas gravitacionais de todo o mundo serão conectados. Assim, poderemos confirmar os dados com mais agilidade. O Virgo, o interferômetro laser, semelhante ao nosso, do Observatório Europeu Gravitacional (EGO, na sigla em inglês), na Itália, deve começar as observações no início de 2017 e o Ligo indiano, em 2024.

Esses equipamentos poderão nos trazer respostas sobre nossa origem e nosso futuro?

A comprovação das ondas gravitacionais marca um novo começo da astronomia, que nos levará a compreender mais sobre o universo e as questões fundamentais que guiam o ser humano. Decidi estudar física porque achava que as teorias de Einstein pudessem explicar tudo e, hoje, usamos essas ideias para saber sobre como nasceu e para onde irá o universo. Com as ondas gravitacionais temos ferramentas para, literalmente, tentar compreender o passado, medir e prever o futuro – em outras palavras, passado e o futuro da humanidade, o meu e o seu.

Os limites do conhecimento serão, portanto, expandidos?

Uma das implicações mais incríveis da física é que o universo está se expandindo, neste momento. Bem, para mim, isso é algo incompreensível – estou conversando com você e nós estamos nos distanciando. Contudo, essa é apenas uma consequência do fato de o espaço-tempo ser dinâmico e, agora poderemos medir esse tecido do universo no qual estamos mergulhados – e talvez eu consiga compreender melhor sua expansão. Isso é absolutamente incrível. Teremos respostas inovadoras e formularemos novas questões e é isso que nos faz humanos: a capacidade ilimitada de perguntar, construir instrumentos para buscar soluções e, então, encontrar novas questões.


Postado por David Araripe

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