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Cientistas unidos

No pós-guerra, pesquisadores fundaram em São Paulo associação que iniciou onda de criação de instituições de pesquisa

Não bastaram as referatas, os animados encontros das sextas-feiras entre os cientistas do Instituto Biológico de São Paulo com outros intelectuais, artistas e um público geral para tratar de novidades da ciência e da cultura. Em 1948, em busca de espaços mais amplos para promover a circulação de ideias, criou-se a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Priorizando a comunicação entre pesquisadores, a agremiação ganhou espaço ao lado de instituições de pesquisa ou de apoio à ciência que emergiram na década de 1950 e moldaram as formas de produção do trabalho científico válidas ainda hoje no país.

“A SBPC foi uma forma de autoafirmação dos cientistas de São Paulo”, observa a historiadora da ciência Maria Amélia Mascarenhas Dantes, professora sênior do Departamento de História da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
O Rio de Janeiro era a capital do país e tinha maior visibilidade científica. São Paulo, porém, já tinha o que mostrar. Em prédios espalhados pela cidade, já funcionava a USP, criada em 1934, e o Instituto Biológico, de 1927, que era então um dos centros de pesquisa mais importantes do país. Lá estavam pesquisadores egressos do Instituto Oswaldo Cruz, do Rio de Janeiro, como o médico Henrique Rocha Lima (1879-1956), diretor científico do instituto, que havia trabalhado com Oswaldo Cruz (1872-1917), Adolfo Lutz (1855-1940) e Carlos Chagas (1879-1934) e identificado a bactéria Rickettsia prowazekii como a causadora do tifo quando estivera na Alemanha (ver Pesquisa FAPESP nº 231). Em 1948, um dos fundadores da SBPC, o médico e farmacologista Maurício Oscar da Rocha e Silva (1910-1983), então no Biológico, e seu colega Wilson Teixeira Beraldo (1917-1998), na USP, identificaram a molécula de bradicinina, um poderoso vasodilatador mais tarde usado em medicamentos para controle da hipertensão arterial. 

O físico César Lattes em 1948, ao regressar da Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos

Apesar da origem paulista, a nova associação começou com 256 sócios-fundadores de todo o país. Um ano depois havia 352 associados, “embora a composição dos membros estivesse quase inteiramente restrita a pesquisadores de ciências exatas e naturais”, observou Ana Maria. Hoje a SBPC tem cerca de 5 mil membros, depois de chegar a 16.700 na década de 1980. A Associação Americana para o Progresso da Ciência (AAAS), uma das fontes de inspiração da SBPC, começou em 1849 com 78 membros e atualmente reúne cerca de 120 mil.

Em uma primeira reunião, em maio de 1948, o biólogo Paulo Sawaya (1903-2003), da USP, Rocha e Silva e o médico José Reis (1907-2002), do Instituto Biológico, decidiram convidar os colegas cientistas para fundar uma associação inspirada em agremiações similares do Reino Unido, da Argentina e dos Estados Unidos. Rocha e Silva tinha visto como os cientistas norte-americanos e britânicos se organizavam quando trabalhou nos Estados e Unidos e na Inglaterra, entre 1940 e 1946. O grupo cresceu quando se reuniram um mês depois, na Associação Paulista de Medicina, e formaram uma comissão para redigir os estatutos.

 O biólogo Paulo Sawaya, professor da USP e um dos fundadores da SBPC

Em 8 de julho, o estatuto foi aprovado e a nova associação formalizada, com a presidência do advogado e professor da USP Jorge Americano (1891-1969). Rocha e Silva assumiu como vice-presidente, Sawaya como tesoureiro e Reis como secretário-geral. Os primeiros documentos definiam a missão da SBPC: defender a ciência e a independência do pesquisador brasileiro, aumentar a cooperação entre as equipes dos centros de pesquisa e facilitar a compreensão da ciência por especialistas de outras áreas, por meio de publicações, cursos, intervenções junto aos governos e encontros entre cientistas e o público geral.

Em 1948, a situação da pesquisa básica no Brasil “era nitidamente desfavorável, se comparada com a das ciências de aplicação, a medicina e a tecnologia, por exemplo”, comentou Rocha e Silva em um discurso na abertura da 10ª reunião anual da SBPC, realizada em junho de 1958 no prédio da USP da rua Maria Antônia, no centro da cidade, e no campus do Butantã. “Os escritores, os artistas, os poetas, além dos médicos e metalurgistas, tinham todos os seus congressos bem organizados”, disse ele. “Os cientistas permaneciam indiferentes aos trabalhos de seus colegas, que só eram lembrados nas horas de briga, para se desfazerem uns dos outros.”

O médico José Reis, pesquisador do Instituto Biológico, também estava entre os criadores da entidade (Acervo José Reis / Casa de Oswaldo Cruz / Fiocruz)

As circunstâncias, porém, favoreciam a ciência. “Após a Segunda Guerra Mundial, principalmente nos Estados Unidos, a ciência foi entendida como uma forma de segurança nacional”, diz o filósofo e historiador da ciência Antonio Augusto Passos Videira, professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). “Os militares e políticos brasileiros estavam convencidos de que não haveria como garantir a soberania nacional sem desenvolvimento científico.” Como exemplo desse interesse, o marechal Henrique Lott (1894-1984), quando trabalhava como adido militar da embaixada brasileira em Washington, de 1946 a 1948, mandava informes ao governo sobre as estratégias dos Estados Unidos para enfrentar a Guerra Fria, que incluía a valorização da ciência e da tecnologia.

“Os Estados Unidos aceleraram a formação de físicos e os cientistas em geral começaram a ser vistos como mão de obra necessária do país”, observa Videira. “O apoio dos militares à ciência, em especial à energia atômica, explica a rapidez com que as instituições de apoio à ciência foram criadas.” A física nuclear estava em evidência. A grande estrela na época no Brasil era o físico César Lattes (1924-2005), que em 1948 participara da descoberta da partícula elementar méson-pi, que o tornou mundialmente conhecido (leia mais sobre Lattes na entrevista com Igor Pacca, na página 28, e em Pesquisa FAPESP nº 110). O interesse por essa área facilitou a criação do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF) no Rio de Janeiro em janeiro de 1949; em agosto desse ano começou a funcionar a Escola Superior de Guerra, também no Rio.

Em 1948, um projeto de lei prevendo a criação de um conselho nacional de pesquisa não avançou. Nos anos seguintes, como resultado da articulação promovida pela ABC e pelo almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva (1889-1976), começou a ganhar corpo um órgão para gerir inicialmente a política governamental de energia atômica, o Conselho Nacional de Pesquisa. Instituído formalmente em 1951, foi depois renomeado Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), como relatado pela historiadora Ana Maria Ribeiro de Andrade, pesquisadora aposentada do Museu de Astronomia e Ciências Afins (MAST), em um artigo de 2001 na revista Parcerias Estratégicas. Em 1951 começou a funcionar também a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), criada pelo educador Anísio Teixeira (1900-1971).

O historiador Heráclio Duarte Tavares, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), argumentou em um artigo de 2015 na revista Contemporânea que o apoio dos militares, incluindo Lott, foi importante também na criação do Instituto de Física Teórica de São Paulo (IFT), que começou a funcionar em junho de 1952 e depois foi incorporado à Universidade Estadual Paulista (Unesp). Em agosto desse ano foi criado no Rio de Janeiro o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa).

Instituto Biológico: Centro de Memória do Instituto Biológico

Nacionalismo
“A SBPC tentou mostrar que a ciência, como a cultura, deveria fazer parte da identidade do país, como os povos de origem germânica no final do século XVII mostraram que a ciência, a cultura e a língua eram elementos de unificação nacional”, diz Videira. Ele destaca outro aspecto do contexto histórico e científico da criação dessas instituições: “Os cientistas viram que, além de ciência, tinham de fazer política”. Maria Amélia, da USP, reitera: “A geração de cientistas que criou a SBPC era profundamente nacionalista e otimista e estava convencida de que a ciência deveria ajudar a melhorar o país”.
A partir de 1949, com a primeira das sucessivas reuniões anuais, realizada em Campinas, e a publicação da revista Ciência e Cultura, a associação de cientistas começou seu trabalho de divulgação científica para públicos amplos. De modo similar, desde 1935 o Instituto Biológico publicava a revista mensal O Biológico, escrita pelos próprios pesquisadores, em linguagem simples, e dirigida a produtores rurais. Vários artigos já mostravam o prazer de escrever de José Reis, que mais tarde ganhou visibilidade com sua coluna na Folha de S.Paulo.


REFERÊNCIAS
Artigos científicos
SILVA, M. R. e. Dez anos pelo progresso da ciência. Ciência e Cultura. v. 10, n. 4, p. 197-203. 1958.
ANDRADE, A. M. R. de. Ideais políticos. A criação do Conselho Nacional de Pesquisas. Parcerias Estratégicas. v. 11, p. 221-42. jun. 2001.
TAVARES, H. D. O Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas e o Instituto de Física Teórica sob a ótica militar. Contemporânea. v. 6, n. 6, p. 67-82. 2015.
Livro
FERNANDES, A. F. A construção da ciência no Brasil e a SBPC. Brasília: Editora UnB, 2ª ed. 2000.


Postado por Cláudio H. Dahne (Ciências Biológicas - UFC)

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