Em tempos de crise, ressurge a cobrança pelo retorno do financiamento público de pesquisa sem levar em conta que a produção da ciência segue caminhos complexos e interligados
Em tempos de crise econômica, é comum que a sociedade questione a
aplicação do dinheiro público e queira privilegiar atividades que deem
retorno visível e imediato. Áreas em que os resultados são mais difusos
ou menos palpáveis frequentemente passam a ser vistas como não
prioritárias na hora da alocação dos recursos. Quando esse fenômeno
afeta o sistema de pesquisa, cujo financiamento depende em grande medida
– varia de país a país – do Estado, com frequência ele se traduz na
oposição entre pesquisa básica e pesquisa aplicada, como se fossem
conceitos independentes e não profundamente interligados. O investimento
em pesquisa que resulta imediatamente em novos produtos e tecnologias
tende a ser visto como o mais importante, por trazer retorno tangível à
sociedade. Já os recursos direcionados à ciência básica às vezes são
considerados uma extravagância, como pontuou em 1967 o então governador
eleito da Califórnia, o republicano Ronald Reagan, ao propor, como
medida para resolver problemas orçamentários, que os contribuintes
deixassem de financiar a “curiosidade intelectual” em programas e cursos
das universidades estaduais. “Nós acreditamos que há certos luxos
intelectuais que talvez pudéssemos dispensar”, disse Reagan, atraindo
críticas de toda parte. “Se uma universidade não é o lugar em que a
curiosidade intelectual deve ser encorajada e subvencionada, então ela
não é nada”, reagiu à época o jornal The Los Angeles Times, em editorial.
Na realidade da ciência no século XXI, o debate demanda
classificações bem mais complexas do que as duas categorias, pesquisa
básica e pesquisa aplicada, têm a oferecer. “Os conceitos de pesquisa
pura e aplicada podem ter alguma utilidade em discussões abstratas e
funcionar em situações específicas, mas não servem adequadamente para
categorizar a ciência”, sustenta Graeme Reid, professor de política
científica da University College London, no Reino Unido, e autor do
relatório Why should the taxpayer fund science and research?
(“Por que o contribuinte deveria financiar a ciência e a pesquisa?”),
publicado em 2014. Em primeiro lugar, diz ele, o denominador comum para
classificar a ciência deve ser a “excelência”, sem a qual nem o
conhecimento básico nem o aplicado produzem resultados consistentes.
Reid cita o exemplo do Higher Education Funding Council for England
(Hefce), órgão que financia e avalia o sistema universitário de ensino e
pesquisa da Inglaterra. O Hefce distribui recursos sem fazer referência
às duas categorias, uma vez que a qualidade da pesquisa é que a
habilita a ter impacto. O relatório menciona um documento lançado em
2010 pelo Conselho de Ciência e Tecnologia ligado ao premiê do Reino
Unido, intitulado A vision for UK research, segundo o qual o
cerne da atividade de pesquisa é sua capacidade de fazer perguntas
importantes; a insistência em distinguir uma vertente pura e outra
aplicada gera mais problemas e divisões do que produz soluções. Reid
observa que os benefícios decorrentes de investimentos em pesquisa
ganharam formas variadas que vão muito além da polarização entre as
vantagens de compreender melhor os fenômenos por um lado e, por outro,
os ganhos gerados pelo desenvolvimento de tecnologias – tais como as
startups oriundas de universidades que podem transformar conhecimento em
riqueza rapidamente, a atração de investimentos globais em pesquisa e
desenvolvimento (P&D) para universidades e polos de inovação ou,
ainda, a oferta de mão de obra altamente especializada a empresas e
organizações públicas, entre outras. “O ambiente de pesquisa é um
ecossistema delicado que oferece múltiplos benefícios para a economia e a
sociedade ao longo de caminhos complexos e interligados”, diz.
No lugar de distinguir os benefícios da ciência básica e da aplicada,
atores e instituições do sistema de ciência construíram novas formas de
classificar os objetivos da pesquisa, que orbitam em torno de um
conceito-chave: o impacto que o investimento pode produzir. “Impacto é
um conceito bastante amplo e tem várias dimensões, como o social, o
econômico e o intelectual”, destacou Carlos Henrique de Brito Cruz,
diretor científico da FAPESP, no capítulo que escreveu para o livro University priorities and constraints (Economica,
2016), que reúne as contribuições de 23 líderes de universidades de
pesquisa apresentadas em junho de 2015 no fórum Glion Colloquium, na
Suíça. Existem pesquisas que promovem benefícios à sociedade ao
inspirarem ou darem respaldo a políticas públicas em praticamente todas
as esferas. Um exemplo geral é o da contribuição de várias disciplinas
para a compreensão de fenômenos ligados ao clima. Outro, específico, é o
papel dos resultados do programa Biota-FAPESP na atividade legislativa.
Criado em 1999 para mapear a biodiversidade do estado de São Paulo, o
programa produziu conhecimentos divulgados na forma de artigos
científicos, livros, atlas e mapas, que serviram de referência para a
criação de seis decretos governamentais e 13 resoluções sobre o
ambiente.
Num estudo de 2005, financiado pelo Departamento de Pesquisa, Ciência
e Tecnologia de Quebec, no Canadá, os cientistas políticos Benoît Godin
e Christian Doré buscaram mapear os diferentes tipos de impacto gerados
pela pesquisa e chegaram a uma lista de 11 itens. Alguns são notórios,
como o científico, o tecnológico e o econômico. Outros são menos
estudados, como o impacto cultural, entendido como as transformações nas
habilidades e atitudes dos indivíduos geradas pela compreensão ampliada
de fenômenos da natureza; ou o impacto organizacional, em que novos
conhecimentos ajudam a aperfeiçoar a gestão (ver quadro).
“Embora o impacto econômico não deva ser negligenciado, ele representa
uma fração de um todo que se estende para as esferas social, cultural e
organizacional da sociedade”, explicaram Godin e Doré no estudo.
A ciência pela ciência
Um grande vilão nessas discussões é a chamada pesquisa conduzida pela curiosidade, entendida de forma equivocada como sinônimo de pesquisa básica. Trata-se, na verdade, daquela em que o cientista escolhe o tema sobre o qual se debruçará – em vez de ser induzido a pesquisar determinada área ou problema –, que pode ter um caráter abstrato, aplicado ou ser uma combinação de ambos. Embora não intencionalmente, essa vertente já produziu contribuições marcantes em áreas como lasers, física atômica e biotecnologia. Um caso clássico aconteceu em 1983 quando duas equipes de pesquisadores, trabalhando em países diferentes, descobriram que um retrovírus, posteriormente batizado de HIV, era o causador de uma doença recém-descoberta, a síndrome da imunodeficiência adquirida (Aids). As equipes do norte-americano Robert Gallo e do francês Luc Montagnier obtiveram êxito graças a anos de pesquisa sobre retrovírus impulsionada pela curiosidade de cientistas, pois não se imaginava que tivesse relevância para a saúde humana (ver mais exemplos).
A pesquisa com impacto intelectual pode também resultar em impacto
econômico ou social, mas uma parte dela servirá exclusivamente para
ampliar o limiar do conhecimento, sem um retorno tangível imediato. “Nem
sempre há um ponto final a ser alcançado pela pesquisa básica”, disse o
bioquímico Stephen Buratowski, professor da Universidade Harvard, cujo
laboratório estuda mecanismos de expressão dos genes em células
eucariontes, numa entrevista ao site da Harvard Medical School. “Muitos
dos assuntos estudados a partir da curiosidade dos cientistas buscam
responder a questões fundamentais da biologia. Sua compreensão permite
seguir adiante e enfrentar problemas clínicos concretos.”
Um exemplo de nova categoria de produção de conhecimento fortemente
baseada na pesquisa movida pela curiosidade é a chamada pesquisa
transformadora, que envolve ideias e descobertas com potencial para
mudar radicalmente a compreensão sobre conceitos científicos e criar
novos paradigmas. O termo, adotado na segunda metade da década passada
pela National Science Foundation (NSF), principal agência de pesquisa
básica dos Estados Unidos, e pelo Engineering and Physical Sciences
Research Council (EPSRC), do Reino Unido, define não somente pesquisa
que envolve criatividade e alto risco, mas também aquela com capacidade
de levar a tecnologias radicalmente novas – com possibilidade de retorno
fabulosa. Mas, para alcançar esses resultados, é preciso considerar que
ideias realmente revolucionárias podem demandar um longo tempo de
desenvolvimento, possivelmente exijam altos investimentos e, ao final,
talvez não apresentem os resultados desejados. Assim é a ciência.
A dificuldade de compreender essas limitações da ciência
frequentemente gera tensões. Em fevereiro, foi aprovada na Casa dos
Representantes dos Estados Unidos, a Câmara dos Deputados do país, um
projeto de lei que propõe mudanças no processo de avaliação da NSF. O
texto, que ainda precisa ser votado pelo Senado, exige que todo projeto
de pesquisa apresentado à NSF venha acompanhado por uma justificativa
descrevendo como ele não apenas “promove o progresso da ciência nos
Estados Unidos” mas também atende ao “interesse nacional”. “Muitos dos
critérios mencionados para determinar se um projeto é de interesse
nacional não se aplicam à ciência básica”, reagiu John Holdren, diretor
do escritório de Política Científica e Tecnológica da Casa Branca, ao
propor o veto ao projeto se ele for aprovado. “Os autores da lei
questionam se a pesquisa vai aumentar a competitividade da economia,
melhorar a saúde e o bem-estar, fortalecer a defesa nacional. Isso só
tem a ver com pesquisa aplicada. Será que eles não entendem que a
pesquisa básica envolve a busca da compreensão científica sem antecipar
qualquer benefício particular?”, indagou. Esse tipo de pressão no
parlamento não é novidade para a NSF. Em 2013, a agência suspendeu a
seleção anual de projetos em ciência política depois que o Congresso
aprovou uma lei impedindo-a de financiar pesquisas nesse campo do
conhecimento sem que houvesse garantias de que elas beneficiariam a
segurança nacional ou tivessem algum interesse econômico. Nas
negociações do orçamento, o senador republicano Tom Coburn referiu-se ao
“desperdício de recursos federais em projetos de ciência política”.
Veja a matéria completa no link:
http://revistapesquisa.fapesp.br/2016/08/18/os-impactos-do-investimento/
Enviado por Flavio Bitencourt
Postado por Hadson Bastos
Comentários
Postar um comentário